Em momento histórico para a ALB, evento discute fome e literatura, com a presença do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
A Academia de Letras da Bahia (ALB) promoveu, nesta terça-feira (29), a mesa redonda ‘Fome e Literatura’. Estiveram presentes o presidente da ALB, Ordep Serra; o também Acadêmico Emiliano José; o coordenador do Programa Bahia Sem Fome, do Governo do Estado, Tiago Pereira; e a líder do MST na Bahia, Eliane Oliveira. O escritor Walter Barretto Jr. participou direto da Austrália, de forma virtual.
Ordep Serra destacou a importância da ocasião: “É uma honra recebê-los para tratarmos de um assunto que é da maior relevância para toda a sociedade. A Academia de Letras da Bahia é a primeira Academia do Brasil a trazer para seu espaço esse tema. Há 2 anos, organizamos uma reunião sobre a fome, ainda de modo virtual. Essa é a segunda vez, a primeira de modo presencial. A instituição cultural que não discute a questão da fome não tem vergonha. É uma instituição sem vergonha. Na literatura, na arte em geral, não se pode ignorar a fome, pois todos nós enfrentamos essa questão social séria, de um jeito ou de outro. A fome resulta de uma decisão política. O Brasil não era pra ter fome”.
Mediador do debate, Emiliano José lembrou a memória do escritor, cientista social, nutrólogo e professor Josué de Castro (1908-1973) e sua incansável luta contra a fome e a injustiça social no Brasil. Ativista político, publicou obras como ‘Geografia da fome’, ‘Geopolítica da fome’ e ‘Homens e caranguejos’, que contribuíram para o debate sobre a fome e viraram referência no mundo todo. “Falamos pouco de Josué de Castro, creio tratar-se de uma injustiça histórica. Devia ser um dos nossos herois, sobretudo em tempos como este, porque dedicou-se a investigar o meio ambiente, fez trabalhos ecológicos, e isso em tempos onde o assunto era pouco discutido. A fome no mundo e no Brasil era a obsessão dele. Lembro-me que, no início da minha militância, figurava entre as minhas primeiras leituras, ao lado de Paulo Freire”.
Eliane Oliveira trouxe à luz Carolina Maria de Jesus (1914-1977): “Hoje são mais de 20 milhões de brasileiros passando fome. Mas, quero me ater a uma escritora, enquanto mulher negra, que diz que ‘a tontura da fome é pior do que a tontura do álcool’: Carolina de Jesus”. A líder do MST na Bahia também presenteou o acervo da ALB com o livro ‘De onde vem a nossa comida?”, disponível nas escolas do MST, e que apresenta aos educandos o início do processo da produção do alimento no Brasil. “Setenta por cento da comida de verdade, que está na mesa dos brasileiros, é produzida pelos pequenos agricultores, mas o modelo de produção que determina, infelizmente, é o agro”, lamentou.
Coordenador do Bahia sem Fome, Tiago Pereira trouxe alguns dados. Segundo ele, em 2024, cerca de 14 milhões de pessoas saíram do mapa da fome, mas 20 milhões ainda enfrentam essa situação degradante. “A sociedade foi construída negando direitos, inclusive o direito à natureza. Hoje, após mais de 500 anos, temos esse passivo histórico. Mais recentemente, vivemos seis anos muito difíceis, com a retomada do Brasil ao mapa da fome, por conta, sobretudo, do desmonte dos recursos federais, da inoperância das políticas públicas. Há quem diga que foi a pandemia, mas não podemos atribuir apenas a ela. Isso é fruto da inoperância das políticas públicas à assistência social. Agora, temos o combate à fome como prioridade. O Bahia sem Fome surge nesse cenário”, explicou.
Walter Barretto Jr. também agregou ao debate dados importantes sobre o tema e destacou que o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Segundo estudo do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, desde o ano 2000, o país tem liderado a produtividade agropecuária mundial entre 187 países, com um crescimento de 3,18% ao ano, a maior taxa entre os países selecionados. “Ou seja, produzimos alimentos para todos os brasileiros, porém, como nem todos possuem recursos financeiros para adquirir o volume necessário de alimentos para uma alimentação saudável, vivem em situação de insegurança alimentar e milhares de toneladas de alimentos são exportadas. De forma alguma somos contra a exportação, ao contrário, esse comércio exterior gera empregos, impostos, divisas, muita riqueza para o Brasil. O que se questiona é a existência da fome com a exportação de alimentos. Dessa forma, no Brasil contemporâneo, mantemos o modelo do Brasil Colônia: alta produção de alimentos, alta exportação de alimentos e parte da população com fome”, completou o escritor e pesquisador.
Para finalizar o evento, considerado mais um momento histórico para a Academia de Letras da Bahia em seus últimos anos, representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra celebraram o fato de pisarem pela primeira vez na instituição. “É uma alegria estar em um espaço como esse, que não foi dada a oportunidade para muitos de nós estarmos, ainda mais quando traz esse tema. Mas é preciso indagar: ‘fome de quê?’, pois a comida só não basta. É preciso ter mais políticas públicas para a cultura, para o esporte, porque o povo também sente necessidade de ter acesso a isso”, concluiu Ivoneide Assunção, militante do MST.