Marcus Vinicius Rodrigues
“O tempo passa, mas na raça eu chego lá.” Caetano Veloso
Ela não tinha máscara para o carnaval e se sentiu nua. Não deveria ser assim, não era mais o seu tempo de criança, quando ia para o clube Fantoches com os pais e o irmão, ela de Colombina, com máscara de veludo e paetê, coquete com a grande saia de filó, e ele de Pierrot, com uma gola que não tinha mais tamanho, toda de filó preto, a lágrima também preta pintada no olho esquerdo e alegria de criança muito descombinada com a fantasia. Só para as fotos, apenas uma vez, é que a mãe conseguiu do filho um ar triste de Pierrot apaixonado. Ele não entendia como era a cara de alguém apaixonado e ainda mais alguém apaixonado e triste. Então, fez cara de menino embirrado, que queria ir brincar e não podia. Era uma cara para a foto, mas era verdadeira. Já estava cheio de tudo aquilo.
Ela tinha suas próprias preocupações. Não sabia bem como era Colombina, uma moça que era namorada do Pierrot, mas saía com o Arlequim. E quem era esse Arlequim que não aparecia? Se a mãe pelo menos tivesse chamado alguém para fazer o Arlequim? Talvez assim ela tivesse entendido aquela fantasia de uma moça que era fingida, que aceitava o amor de um rapaz e saía com outro e não amava nenhum dos dois no fim das contas. Não entendia. Nunca entendeu. Tinha sido sempre fiel aos namorados, à família.
E não era por fidelidade que caminhava agora pela Rua Chile? Ou pelo menos tentava caminhar, já que a rua estava cheia de foliões? O carnaval avançava para o final. Dali a pouco a noite de terça-feira veria seu apogeu. Os trios elétricos se encontrariam para aquele concerto frenético, o desespero dos que odeiam que as coisas acabem. Ela mesma já sentiu aquilo várias vezes, em muitos carnavais, a vontade de aproveitar tudo, todas as alegrias, o medo de não encontrar aquelas pessoas que tinha conhecido ali naqueles dias fora dos dias normais.
Agora, via aquelas pessoas eufóricas, agarradas a um momento que já estava passando e que não retornaria mais. O próximo carnaval nunca seria igual àquele que passou. Era este o sentimento. Uma nostalgia instantânea de um ano ainda muito próximo, às vezes ainda nem acabado. E a cada ano, a cada fevereiro, havia mais daquela memória reinventada que em vez de preencher uma bagagem de alegria, um acúmulo que resultaria em felicidade, fazia o contrário. As cintilações da memória ofuscavam o presente, fazendo com que o que se vivia fosse menor, menos faiscante que antes. Aquele ano perdido no passado foi o melhor carnaval de sua vida. Ela ouviu muitas vezes aquela frase dita por várias pessoas, metamorfoseada em outras tantas frases. Caminhava no meio do carnaval, mas não tinha ido para brincar. Assim, olhava as pessoas como numa vitrine. E até talvez pudesse ser um sentimento apenas seu, mas via nos olhos dos outros aquela tristeza: o carnaval já foi melhor. Não via nos jovens. Esses tinham olhos brilhantes como quando se olha pela primeira vez para uma luz. Era nos mais velhos que ela podia ver o olhar vidrado de quem não enxerga o presente e se volta para o passado que foi mais colorido. Passou por ela uma mulher loira com os olhos muito pintados, meio Cleópatra. Encarou e era como se confirmasse o sentimento que tinha. Eram olhos entristecidos que diziam: já foi melhor. A mulher riu para ela uma gargalhada violenta que a fez recuar e se encostar na vitrine da Loja O Adamastor. No mesmo instante passava um grupo de homens mascarados, os caretas, mexendo com os outros foliões. Ela se encolheu mais ainda para se proteger. Não tinha medo, não precisava ter, mas a lembrança de novo de um carnaval da infância a fez evitar o olhar daquelas máscaras. Embaixo do tecido colorido, dos chifres em forma de cones, podia adivinhar os olhos zombeteiros que na infância pareciam saber tudo de sua vida. Era certo que os caretas que ela encontrava quando criança eram seus tios e primos, mas naquela época ela não sabia e se assustava com a maneira como eles sabiam o seu nome e o de sua mãe, de como podiam dizer em que colégio estudava, se tinha boas notas. Ela ficava fascinada com aquela clarividência, o mistério, e ao mesmo tempo tinha medo. Não era um medo comum, como se os caretas fossem um bicho papão ou algo assim. Ela se sentia desprotegida, tinha medo do que eles pudessem saber, medo de que pudessem descobrir algo que ela nem mesmo era capaz de adivinhar, algo que estava lá dentro escondido e que, se fosse nomeado, poderia escapar. Ela tinha medo de perder o controle desse mistério que trazia dentro. Foi por isso que se encolheu e desviou o olhar. Tinha medo de ser descoberta.
Os caretas passaram sem a notar. Estavam mais interessados em um grupo de moças que se davam os braços umas às outras, num gesto de autoproteção que se revelava inútil e até mesmo contrário a suas intenções. Elas se comportavam como vítimas e, assim, atraíam o ataque dos rapazes. Maria viu como os caretas brincavam com as meninas e como elas se esquivavam e riam. Talvez não estivessem mesmo se protegendo, mas apenas cumprindo um papel de que gostavam. Eram o alvo.
Afastou-se rapidamente do local. Tinha passado despercebida. Achava que talvez fosse porque estava com roupas normais e não roupas de carnaval. Um jeans e uma blusa branca simples, os cabelos anelados soltos, sem nenhum cuidado, sem nenhum brilho. Não levava bolsa. Tudo de que precisava estava com Carlos lá no Comércio, na Cidade Baixa. Foi isso que ele lhe disse.
Estava arrependida do caminho que tinha feito. Pensou que deveria ter desviado mais do carnaval. Devia ter feito um plano de fuga em vez de se lançar quase em linha reta, destemida, mas inconsequente. Não tinha pensado nas consequências. Ou melhor, tinha pensado, mas naquelas que viriam no final de tudo, aquilo que lhe movia. Esse propósito é que lhe dava coragem para agir, mas era ainda um sentimento novo. Talvez não a coragem em si. Não, ninguém poderia dizer que não foi sempre uma moça forte, uma mulher capaz de enfrentar o mundo. A novidade era aquele plano de que Carlos lhe falara com tanto entusiasmo. Nunca tinha se imaginado naquela situação, tinha hesitado, mas parecia que não era possível escapar do que estava acontecendo. Foi então que decidiu e aceitou. Uma força a impulsionava para a frente. Foi assim que acabou em meio ao carnaval. Seguiu pelo caminho mais curto desde o Largo da Palma passando pela Ladeira da Praça. Sem pensar, entrou pela Rua Ruy Barbosa. O carnaval ali já era uma presença forte, mas foi apenas na Rua Chile que se deu conta de que não tinha feito uma boa escolha. Pretendia chegar à Rua da Misericórdia para descer para a Cidade Baixa, mas viu que não poderia enfrentar toda aquela multidão. E tinha a Loja Duas Américas, ou o prédio onde ficava antes do incêndio, as escadas rolantes que lhe davam medo e que subia agarrada no irmão. Não, não tinha sido uma boa escolha.
Outro grupo de caretas passou e dessa vez mexeram com ela. Uma brincadeira leve, mas ela se sentia tão exposta naquelas roupas comuns, sem máscara, sem disfarce, que se sentiu ainda mais acuada. A alegria daquela gente não lhe parecia sincera ou ao menos não era legítima. O país naquele estado de coisas, tantas pessoas desaparecidas. Não entendia aquela festa toda. Não poderia pensar naquilo como o carnaval que tinha vivido na sua infância. Então, foi a vez de ela mesma pensar “já foi melhor”. E então aquela música tocou mencionando uma Colombina que um Pierrot amava, mas ela não queria. Incompreensivelmente, ainda assim, ele era feliz. O irmão apareceu de novo em sua lembrança, mas não mais fantasiado. Estava adulto e falava de como era preciso fazer alguma coisa para mudar o Brasil.
“A luta!”
Aquela frase ecoou na sua cabeça junto com a marchinha de carnaval. Passou um grupo vestido com mortalhas até os pés, seis casais. Vinham aos pares, em fila, era quase uma formação militar. Tudo aquilo a angustiou. Não havia como continuar por mais alguns quarteirões até a Misericórdia. O que fazer? O elevador estaria também tomado, se estivesse funcionando. Foi então que lembrou da Rua do Pau da Bandeira. Desceria por ali e pegaria a Ladeira da Montanha. Não era um caminho seguro, ainda que estivesse cheio de gente por causa da festa, mas o que era seguro naqueles tempos? Não foi fácil atravessar a rua. Esperou ainda um bloco passar com suas músicas e sua desesperada alegria. Foi o tempo de se dar conta de que a noite já tinha caído completamente. Ela, que saíra de casa ainda no claro da tarde, encontrava-se agora no escuro. Sua coragem refreou, mas não havia como voltar.
Quando desceu pela rua o escuro se cobriu de silêncio. Um silêncio relativo, apenas perceptível se comparado com a balbúrdia da rua lá em cima e seus blocos. O pequeno trecho da Rua do Pau da Bandeira foi o mais difícil. Sentiu-se como se tivesse afundando, a queda moral de que tinha falado aquela professora na sua formatura.
“Não caiam”, ela disse.
“Não sejam menos que esse juramento. Da queda moral não se levanta, não se sacode a poeira. A poeira entranha na alma para sempre.”
Enquanto descia, aquelas palavras vinham exatas na lembrança, talvez porque o discurso tenha sido publicado depois num periódico, justamente em homenagem aos quarenta anos de enfermagem da professora, talvez porque, durante a cerimônia da Lâmpada, tenha ruminado aquelas frases todas. Talvez porque, enquanto descia a ladeira, sentisse mais próxima aquela eternidade amaldiçoada de que falava a professora.
Não tinha certeza de que era certo o que ia fazer. Mas Carlos mostrava tanta certeza, acreditava tanto na necessidade de tudo aquilo. Parecia seu irmão há tantos anos atrás. Ela então não conseguia entender bem o que estava acontecendo. Não poderia adivinhar que tanto horror poderia ser feito pelas sombras. Aprendeu do jeito mais cruel. O ferro quente da verdade se cravou em sua carne. Ela agora poderia ensinar o quanto podem ser perversos os militares. Estava escolada. Mas tinha dúvida.
Carlos insistira, fora muito persuasivo. Pesava a seu favor aquele amor que surgiu em meio ao luto vago que ficou depois do desaparecimento do irmão, uma incerteza entre a perda e a esperança. Ela ainda hoje se sentia assim, como se estivesse atravessando uma porta e de repente ficasse presa, a cabeça e os braços para um lado, o resto do corpo do outro. Em meio a esse sentimento interrompido, conheceu Carlos. Primeiro foi uma amizade discreta, misteriosa. Ele não falava sobre as coisas que fazia — parecia apenas um rapaz comum. Ela sabia. Havia nele aquele mistério que o irmão tinha incorporado nos últimos tempos antes de desaparecer. Sabia e não conseguia se afastar. Era o que deveria ter feito: afastar-se de tudo aquilo, procurar uma vida normal, sobreviver. Mas Carlos era sedutor e conseguiu aos poucos conquistá-la. O namoro começou quase como um amor antigo, passeios, mãos dadas, uma amizade escorrendo para o romance. Apaixonaram-se.
Um dia, ele lhe trouxe um livro. Ela reclamava de não ter o que ler nos plantões longos da madrugada, uns doentes comportados demais. Ele lhe trouxe uma tradução em espanhol de A mãe, de Máximo Gorki. Seu espanhol não era dos melhores. Teria preferido ler em francês, era boa aluna de línguas na escola, mas se impôs a ler o livro. Considerou um aprendizado. A língua ia se descortinando aos poucos. Havia uma ou outra palavra que não compreendia, um dicionário ajudava, mas o texto parecia claro mesmo quando simplesmente passava adiante sem se preocupar com os vazios de entendimento. Do meio para o final já lia rápido sem ajuda de dicionário. Não poderia repetir as palavras em espanhol, mas era capaz de contar toda a história de memória. Haveria talvez uma invenção aqui e ali para fechar os buracos, mas o essencial permanecia. A mãe se colocava no lugar do filho, assumia seu posto na luta depois que ele era preso. As fileiras do ideal intactas.
O livro a ajudou a sair daquele lugar em que estava presa, o corpo espremido pela porta fechada. Sentiu que poderia fazer mais pelo irmão, estivesse ele vivo ou morto, se assumisse de alguma forma seu lugar. Pensou isso em meio a uma madrugada, na penumbra de um quarto branco de hospital. Veio como uma certeza que logo arrefeceu. E se Carlos tinha feito de propósito? Ele não era claro sobre até que ponto estava envolvido com a resistência. Ela desconfiou e não gostou. Sentiu-se aliciada, alvo de uma catequese.
“Poxa! Catequese? Não é nada disso. É apenas um livro.”
Ela insistiu. O que ele pretendia? Uma companheira de luta?
“Aí você se engana. A última coisa que quero é envolver você nisso.”
Ele negou a intenção, negou que quisesse fazer dela uma companheira, talvez uma guerrilheira. Não. Ela a queria quieta na sua vida, esperando por ele, um porto seguro. Um abraço quente para voltar.
Ela não saberia dizer agora se aquilo teria sido a dissimulação da dissimulação. O certo é que acabou aos poucos se infiltrando nas fileiras. Um comentário aqui, uma ideia lá, uma reunião. Aos poucos foi se tornando indispensável. Mas havia limite? Não estaria descendo demais?
Estava já no meio da Ladeira da Montanha. Um pequeno trio elétrico estava emperrado. Não conseguia subir com o peso todo que carregava. Em volta, os organizadores do bloco discutiam como resolver o problema. Ela passou quase espremida na muralha que sustentava a encosta. No alto o Elevador Lacerda parecia um arco, um portal gigante. Ela se afastou da multidão e seus problemas tão banais. Deveria seguir ainda por algumas ruas lá embaixo até encontrar Carlos. Acelerou o passo, desceu mais rápido ainda embalada pela ladeira. Não se apressava para chegar. Apressava-se para se afastar o mais depressa daquelas pessoas. Dava-lhe angústia toda aquela gente. Mas não queria de verdade chegar. Tinha dúvidas. Não que soubesse com certeza o que pretendia o namorado. Não sabia. Intuía. E sua intuição parecia mais concreta do que qualquer certeza.
Ele falava da operação, apenas isso, a operação. Mas não contava nada, nenhum detalhe. Exigia entrega total, uma fidelidade cega, obediência às hierarquias. Ela se sentia desconfortável com aquele tom autoritário do namorado, mas estava decidida a ir, cega, guiada pelas certezas do namorado, do irmão. Foi assim que chegou ao Comércio, o bairro em que estavam os bancos da cidade, o dinheiro. Seguiu pela ruas de trás, as mais desertas. Era ali que tinham marcado, um lugar obscuro, em meio à festa de carnaval. Uma data estranha.
“Mas é o melhor momento. Todo mundo distraído com o carnaval. É perfeito.”
Ele estava lá. O fusca branco se destacava no escuro. Ela quase correu, na precipitação de resolver aquilo. Logo viu que deveria ser mais cuidadosa. Uma mão saiu da sombra e agarrou seu braço. Tomou um susto que a desestruturou completamente. Era Carlos.
— Calma.
Ela se debateu em seus braços.
— Calma. Relaxa.
— Que é isso? Você me assustou.
Ele lhe falou que tinha achado melhor esperar fora do carro, escondido.
— Você não sabe que é perigoso?
Ela sabia? O único perigo que sentia era aquele desconhecimento do que iriam fazer. Tentou ali mesmo perguntar qual era o plano. Ele não lhe disse.
— Primeiro vamos sair daqui.
Ele a levou para o carro e abriu a porta do passageiro. Ela se acomodou no banco enquanto ele dava a volta. Estava conformada. O que quer que fosse fazer, para ela estava feito. Não poderia voltar a partir daquele ponto. Sentia que iriam fazer algo não muito certo, não muito bom. A partir daquele momento seria o extremo. Lembrou de seu irmão lhe dizendo no meio de uma das muitas discussões que tiveram.
“Às vezes é preciso fazer alguma coisa errada para fazer o que é certo.”
Aquela era a divisa do irmão, seu mantra. Ele estava convencido disso. Ela, não. Duvidava que devesse seguir um caminho de luta como se estivesse numa guerra. Era uma enfermeira, deveria cuidar das pessoas. Mas será mesmo que não estavam numa guerra? Pensou mais uma vez em desistir, mas era tarde. O mundo se movia contra a sua vontade e tudo acabava de mudar de rumo, um rumo que ela não poderia jamais prever.
Ouviu um barulho de luta, um grito, socos, um tiro.
Não pôde reagir, não teve tempo de compreender o que estava acontecendo. A porta do motorista se abriu e um careta entrou no carro, a máscara era vermelha com os dois chifres pretos. Do seu lado outro careta entrou. Tinha uma arma na mão e a empurrou para o meio do carro. Sentou. Tinha a máscara metade preta metade vermelha e os chifres brancos. As roupas dos dois acompanhavam as cores das máscaras. Ela gritou, tentou se soltar, mas não conseguiu. Chamou por Carlos, perguntou o que aqueles homens tinham feito com ele. Gritou, gritou, sem sucesso.
O vermelho arrancou com o carro. Deixou a ruazinha em que estavam e seguiu. Ela ficou parada no mesmo lugar. A cabeça presa a Carlos, que devia estar caído lá atrás. Morto? Ela acusava seus sequestradores de assassinos.
— Calma, dona. Matamos ninguém, não. Seu namorado vai escapar.
— Se achar um médico.
Ele gargalhou e isso a deixou mais nervosa. Carlos sangrava até a morte. Ela sabia e se instalou nela uma urgência. Precisava se livrar daqueles homens e voltar. Nada mais importava. Tinha ficado para trás o plano de Carlos, a luta, agora era pensar em se livrar deles. Não pensou em si e na sua segurança, não pensou que era uma mulher entre dois homens que talvez não tivessem nada a perder. Pensou apenas que tudo acabaria em morte.
Iam já para fora da cidade. Olhou para trás como se ainda fosse possível ver o namorado. O que viu foi uma bolsa grande no banco traseiro. Uma bolsa feita com um tecido de tapeçaria, grosso, com uma estampa antiga de caça à raposa. Era um artesanato que reaproveitava um tapete já maleável pelo desgaste do tempo. Imaginou o que poderia ter ali. Armas? Carlos a estava levando para a luta armada? Achou irônico que a violência planejada fosse interrompida por outra. E qual das duas era a pior? A nobreza da luta contra o regime ou a luta por uma vida melhor, pelo simples dinheiro que compra de comida a luxo. Ela não conseguia pensar direito.
O careta de chifres brancos pegou em seu peito. Ela sentiu que não escaparia ilesa. Tentou se soltar.
— O que vocês querem comigo?
O vermelho respondeu com tranquilidade.
— Fica calma, dona. A gente vai lhe largar logo. Só queremos o carro.
O outro se encostou mais nela. Ela tentava escapar, mas já estava em cima do freio de mão.
— Mas antes dá tempo de brincar um pouquinho.
— Deixa a moça. Ela vai se comportar, não é?
Ela respondeu balançando a cabeça. O outro não gostou. Queria aproveitar que tinha aquela mulher quase no colo. Queria se divertir.
— Já disse que não. Primeiro a obrigação. Depois a sacanagem.
— Então a gente leva ela junto. Depois se diverte.
— E vai fazer o quê? Deixar onde? Não.
— Então vai ter de ser agora.
Ele a suspendeu e jogou para o banco de trás. Depois veio também. Ela caiu sobre a bolsa. Pensou que ali pudesse ter alguma arma, então empurrou o homem com os pés. Era o tempo de abrir e pegar. O homem bateu com a cabeça no vidro do carro e não sentiu nada. Voltou-se pra ela com fúria e quase não acreditou quando a viu com uma garrafa na mão, uma garrafa cheia de um líquido amarelo e com um pano amarrado na ponta.
— Que é isso?
Ela quebrou a garrafa na sua cara preta e vermelha de careta. Um cheiro de gasolina tomou conta do carro.
— Porra!
O careta estava atordoado. Quis tirar a máscara e ficou enrolado, preso. Devia estar ferido ou com o olho ardendo da gasolina.
— Segura ela.
O vermelho tentou esmurrá-la enquanto dirigia. Chegou a atingir seu rosto, mas recebeu de volta uma facada no braço. Era um canivete pequeno mas afiado.
— Puta! Segura o volante.
Eles não tinham treinamento de guerra, não eram soldados. Se fossem certamente nada do que se seguiu aconteceria. O motorista entregou para o outro o volante. Queria se defender, pois não confiava em ninguém para fazer isso. O outro tinha seus próprios problemas. Um corte de vidro, a gasolina que através do tecido da máscara tinha atingido um olho. Seu rosto ardia. Ele não segurou o volante. O fusca, sem guia, escolheu seu próprio caminho, lançou-se fora da estrada e no desnível tropeçou no ar e capotou. Girou duas vezes sobre o próprio eixo antes de cair em pé e descer mato adentro.
Ela teve a sorte de estar acuada. Tinha sido levada para o chão do carro, entre os bancos da frente e de trás. Ali conseguiu resistir à capotagem, segurou-se nos bancos. Algumas garrafas saíram da bolsa e se quebraram espalhando a gasolina. Mas ela ficou protegida. O carro chacoalhava os caretas e os coquetéis molotov numa mistura explosiva. Tudo podia explodir a qualquer momento.
Não explodiu. Quando o carro parou. Ela se surpreendeu de estar viva e, ainda tonta, conseguiu sair pela janela traseira. O vidro tinha caído inteiro. Correu, ou ao menos tentou. Queria sair de perto do carro. Tinha medo de incêndio. Andou apenas alguns metros e caiu, tonta, enjoada do cheiro de gasolina. Ficou ainda alguns minutos deitada. Talvez tenha desmaiado.
— Você é guerrilheira.
Pensou que uma voz lá dentro do sono a acusava. Um subconsciente que retornava de alguma aula de catecismo do Colégio das Mercês, as freiras e suas reprimendas, suas histórias de culpa.
— Você é guerrilheira.
Mas a voz era de homem e parecia mais real.
— Subversiva.
Ela se voltou para o carro e lá estava, deitado, o careta vermelha. O instinto a fez levantar e saber se ele estava bem.
— Você é comunista, né?
Ela o examinou superficialmente. Parecia bem. Alguns cuidados e pararia de sangrar até chegar a um hospital.
— Eu sou enfermeira. Cadê seu amigo?
Ela se levantou para procurar o outro. O careta de preto e vermelho e um chifre branco. Não achou. Em seu lugar estava um menino que não parecia ter 17 anos. Era alto, mas o rosto era de criança ainda. Tinha se ferido muito e não tinha resistido. Morto.
Ela já tinha visto outras pessoas morrerem, mas nunca numa cena como aquela. Seus mortos estavam envoltos em branco, estavam limpos. A morte em meio aos remédios, às drogas é sempre tão asséptica Uma morte daquele jeito nunca tinha visto. Havia muito sangue, muita cor, muita sujeira. Era real demais. Teve ânsias de vômito. Teve vontade de sair dali. Bastava andar, retornar à estrada e encontrar alguém que lhe ajudasse. Estaria livre, segura.
Mas um ladrão estava vivo e era preciso ajudar. Voltou com muito esforço para perto do outro. Ela sabia que precisava diminuir o sangramento. Se ele ficasse muito tempo ali sozinho, morreria. Chegou perto dele. Ainda estava com a máscara. Ela se aproximou e fez menção de puxar. Ele segurou com a mão esquerda. A única que não estava ferida.
— Preciso tirar. Pra saber se não tem mais ferimentos.
Ele segurava.
— Agora não há muito que esconder, não é?
Ele cedeu. Ela tirou com cuidado a máscara e descobriu um ferimento na testa. Usou o próprio pano para limpar e estancar o sangue.
— Cadê meu amigo?
— Morreu.
— Merda.
Ela foi ao carro. Achava que tinha visto álcool também naquela bolsa bomba. Estava lá, numa embalagem plástica. Era inacreditável como não tinha incendiado. Dentro de um bolsinho da bolsa achou uma caixa de fósforo. Uma única. Riu de Carlos e sua ingenuidade. O que ele queria explodir com uma única caixa de fósforo? Será que ele não sabia que fósforos falham? Quando ia saindo, viu o revólver do bandido no chão. Pegou e colocou na cintura, atrás. Voltou para o careta.
— Vou limpar os ferimentos até chegar ajuda.
— Você acabou ferrando a gente.
Ela não respondeu. Fazia seu trabalho. Não queria conversar com aquele bandido. Em resposta, despejou álcool na ferida.
— Merda. Vadia.
— É melhor limpar.
Rasgou algumas tiras da roupa de careta para estancar o sangue no braço. Descobriu um corte fundo na perna. Era preciso fazer um torniquete ali também. Apertou o quanto pôde. Ele gritava e xingava. Parecia que ela o feria de propósito.
— Talvez você aprenda a não roubar os outros.
— Que é? Quer me dar lição de moral? Você com essas bombas no carro. Ia explodir o quê?
Ela se calou. Não devia explicar nada a ele. Não entenderia. E para que falar. Só queria sair dali, mas o que fazer. Alguém logo chegaria. O carro de Carlos seria identificado, aqueles coquetéis molotov ali… seria difícil explicar. Eles iam explodir o quê? Ela também queria saber. Talvez não fosse o melhor a fazer. Lembrou do irmão desaparecido, as muitas histórias que ouviu. Estava certa de que era preciso fazer alguma coisa. Não era mais possível deixar o país naquela situação.
— Escuta. Vou deixar você aqui, vou pedir ajuda. Você precisa de um médico, senão morre.
— Ajuda, nada. Você vai fugir. Como esses comunistas todos. Uns fujões.
— Você não está entendendo nada.
— Você se acha uma grande merda, né? Uma burguesinha brincando de guerrilheira. Gostosa assim, devia tá cuidando do marido. Ah! É aquele carinha lá, né? Entendi.
Ela despejou álcool no ferimento da testa. Caiu um pouco no olho. Ele gritou muito enquanto se contorcia. A dor insuportável. Ela esperou ele se acalmar. Demorou, mas enfim ele parou.
— Eu vou embora. Vou deixar você aqui e chamar ajuda. Quer alguma coisa mais?
— Cadela.
— É muito mal educado você. Não dá pra conversar.
Ela se levantou. Estava decidida. Mas e o carro. O que fazer? Deixaria as provas? Talvez fosse melhor não fazer mais nada. O carro tinha sido roubado. Eles, os bandidos é que tinham aqueles coquetéis. Estava tudo explicado. Era só ir embora.
— Vou embora.
— Piranha.
Ela ignorou os xingamentos e começou a subir pelo mato de volta à estrada. Não sabia bem que lugar era aquele, pra que lado ir. Seria um longo caminho. Mas se tinha escapado do acidente ilesa, significava que a sorte estava de seu lado.
Qual o significado daquilo? Primeiro pensou que podia ser um aviso. Não deveria ter se metido a fazer mal às pessoas, explodir coisas, incendiar, mesmo que não soubesse o que ia fazer. Ia fazer, sabia. Por outro lado, quem garantia que o acidente tivesse sido apenas isso, um acidente, o acaso, e que sua sobrevivência é que fosse uma intervenção divina. Ficou ali parada sentindo-se religiosa demais para uma comunista. Era difícil se libertar de toda uma educação. Mas tinha aprendido a justiça, a liberdade, os valores certos. Sabia que a luta de seu irmão era justa, que Carlos sabia o que era necessário. Ela precisava continuar. Era o certo a fazer.
— Ei, piranha.
Ela pensou em seguir, mas parou.
— Quando chegar a polícia, vou contar seu segredinho, seu e de seu namorado. Comunistas. Vão acabar presos, os dois.
Ela olhou para o céu. Lá estavam as mesmas estrelas que via com o irmão. Ele talvez não as visse mais. Talvez já estivesse morto. Ela não podia saber e essa era a tortura que vivia. Era preciso enfrentar cada dia daquele sofrimento, e era preciso lutar. Ela não seria derrotada como o irmão. Virou-se para o bandido, o careta vermelha, o careta que a assustava na infância, e se decidiu. Desceu de volta enquanto pegava os fósforos e o revólver. As estrelas lá no céu pareciam repetir a voz do irmão como um eco: às vezes é preciso fazer alguma coisa errada para fazer o que é certo.