Em preparação para a Quaresma, durante sete semanas, se haveria de abster de carne. Na primeira destas semanas eis que seria realizada uma festa de carne, muita carne, e a ela dar-se-ia o nome de Carnavalha, ou Carnaval.
No meu modo de ver, Carnaval acontece durante o ano inteiro. Refletindo nisso, eu me perguntava há dias atrás, de onde vem tanta alegria no carnaval? Como se ocorresse o apertar de um botão e de repente BUM! Acende-se a alegria nos espíritos e vamos todos pular, beber, cantar, beijar, abraçar, valer tudo em nome da alegria. Palavra bonita Alegria! Mas, volto a perguntar: Por que a alegria? Somente por se haver tornado a palavra de ordem? Será bastante uma ordem, friamente, convencionada, para que um sentimento se instale? Haverá sinceridade em um sentimento que nos toma em obediência a uma palavra de ordem? Haverá mesmo uma alegria nos espíritos dos que se tornam alucinados a pular a abraçar e a dançar?
Ou tal alegria não passará de uma euforia física tão somente? Como se ao pensamento: Nestes quatro dias posso fazer de tudo, vou soltar os meus demônios. E daí nasce aquela outra alegria, a da liberação. A mim, que olho friamente, é o que me parece. Se assim for, os meus demônios terão motivos para andar zangados comigo pois jamais os liberei seguindo a tal praxe., senão em criança. Mas criança é inocente, sabe de nada, e canta, pula, dança, tomada pelo ritmo, pela festa da alegria inocente.
Essa carnavalha acontece mesmo todos os dias. A humanidade vive um infindável baile de máscaras. Na primeira esquina está um pierrô triste, na próxima há um arlequim zombando das gentes. Mais adiante um pirata que te rouba a alma, e a teu encontro vem um cigano sorridente a te vender ilusões. Sempre atrás de máscaras, todos eles. E tu e eu, palhaços e bufões, a rir por nada, e a fazer os demais rirem também. Todos a rirmos de todos.
As máscaras estão na história de todos os dias. A vida é um continuado assalto no qual mascarados, à mão armada, te levam o dinheiro, a paz, o amor, a lealdade, a fé, a própria vida. Sempre atrás de máscaras.
Tenho na parede da minha sala uma máscara de teatro que eu mesma esculpi, em cujo olho fixei um pedaço de espelho, para quando fitares teu olhar no seu olho, tentando identificar o hipócrita que sob ela se esconde, te vejas, a ti próprio, refletido no teu olho a te lembrar de que tu, também tu, tens estado algumas vezes, poucas ou muitas, sempre ou eventualmente, oculto, sob a aparência inidentificável de alguma máscara.
Na minha terra nasceram os trios elétricos. O primeiro deles filho de Dodô e Osmar, o trio elétrico não tem mãe, em compensação tem dois pais. E a partir desse nascimento não há mais carnaval sem trio elétrico a puxar o povo alucinado. Pulando, tropeçando, pisoteando, atropelando, ao ritmo frenético, metálico. Alegre? Não sei. Mais me parecem imantados, tomados de histeria coletiva, levados, atraídos a buscar alguma coisa vital, urgente, indispensável. E que, entretanto, jamais chegará. E todos voltarão a buscá-la em igual frenesi, no ano seguinte e nos anos que se seguirem, enquanto lhes sobreviver alguma energia no corpo.
Há muito tempo, desde que tenho consciência de existir e ser gente capaz de querer e perseguir um ideal, uma necessidade, um sonho, também corro atrás do meu trio elétrico. Alegre? Também não sei. Obstinada. Magnetizada pela busca de algo vital, urgente, quem sabe por certo indefinível, mais para o sentimento de Paz, de que para a euforia. Pulando, tropeçando, às vezes também, sem o desejar, pisoteando alguém. Faz tanto tempo que corro em busca do seu som e seu ritmo hipnótico, nesse carnaval ideal de todos os dias, que até já o perdi de vista. Acho que o meu trio elétrico correu mais de que a minha energia me permitiu acompanhar, e já não o distingo na confusão da parafernália do mundo.
Gláucia Lemos