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By Paola Cantarini

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Ética e IA

Paola Cantarini

A humanidade sempre enfrentou mudanças devido às tecnologias, contudo, aquelas envolvendo a inteligência artificial (IA) trazem transformações singulares nas estruturas sociais, isto é, jurídicas, econômicas, políticas e educacionais, transformando inclusive nossas subjetividades, nossa percepção, a própria cognição, como sentimos e experimentamos o mundo, pondo radicalmente a questão a respeito do que significa continuar sendo humano face a tais desenvolvimentos do que já nos parece ser outras subjetividades, aí desafiando as velhas dicotomias epistemológicas, como a que separa de forma inconciliável sujeito e objeto. É fundamental então repensarmos a relação entre as diversas disciplinas e saberes, neste contexto, rediscutirmos a inter- e a transdisciplinaridade em novas bases, já que as disciplinas não mais devem ser vistas de forma separada, sobretudo em temas como os da inteligência artificial. E isso, de partida, por envolver as características de uma disciplina transclássica em sua origem, a cibernética, como é o holismo, para citar apenas um exemplo.

Trata-se da questão de como podemos nos reapropriar da tecnologia moderna, através da re-articulação da essência da técnica, considerando-se os conceitos de tecnodiversidade e de cosmoética (Yuk Hui), recuperando o sentido da técnica como “poiesis”, com base nos valores construcionistas do “homo poieticus” (Floridi), superando o sentido moderno associado com dominação, o de engrenagem e dispositivo (Gestell – Heidegger), tão evidente no capitalismo de dados, favorecendo um neocolonialismo digital e novas formas de racismo, donde já estarmos suscitando o advento de uma ciberescravidão.

Neste sentido, é fundamental o desenvolvimento de novas bases epistemológicas e hermenêuticas com fundamento em uma compreensão plural, adiagonal (Foucault), considerando detidamente as ambivalências, contradições e paradoxos, para se “atiçar a potência do pensamento” (Lúcia Santaella), a fim de pensamos tais questões para além de dualismos e de uma visão apenas utópica ou distópica, com destaque para a importância da poética, como lógica não cartesiana, propiciando imaginarmos novas possibilidades, projetadas no futuro, mas que possam moldar também nosso presente, em sintonia com o passado, às vezes mais recuado. É o que procuramos propor como objetivos em dois livros de nossa autoria e coordenação, publicados ainda recentemente, ao final de 2022, pela Editora Lumen Juris, “IA e direito: fundamentos – por uma filosofia da IA”, e “Filosofia da IA com base nos valores construcionistas do homo poieticus”.

Devemos pensar para quem os sistemas de IA são projetados, quem os projeta, como são projetados e para que fins, olhando-se para a necessidade de uma epistemologia inclusiva e uma hermenêutica comprometida com a justiça, abrangendo a justiça do algoritmo e a justiça do design, e neste sentido as Epistemologias do Sul (Anibal Quijano) são um importante fator a ser considerado, verificando-se a importância do contexto e das particularidades sócio-culturais de cada país ou bloco deles.

Postulamos por uma abordagem com foco na interdisciplinaridade e no pensamento crítico, próprio da filosofia, e por uma mudança de uma compreensão do conhecimento representacionalista (mimético) para um construcionista (poiético), indo da “mimesis” à “poiesis”, por uma interpretação poiética dos nossos conhecimentos, como base para uma Filosofia da Inteligência Artificial, em linha com Luciano Floridi, mas dando continuidade ao que já vínhamos desenvolvendo, desde a parceira com Willis Santiago Guerra Filho, em nossa Teoria Poética do Direito, que teve continuidade na Teoria Erótica do Direito. Necessitamos de um desenvolvimento tecnológico que seja democrático, inclusivo, “planet centered”, e que, portanto, leve em consideração as Epistemologias do Sul, de modo a não sufocar a diferença, gerando o problema da autoimunidade social, tal como temos denunciado há já uma década, a partir dos estudos de Willis Santiago Guerra Filho, em sua Teoria Imunológica do Direit.

Embora seja corrente a afirmação da aceleração do tempo (dromologia – Paul Virilio), representada pelo clichê “time is money”, aliada à lógica tradicional das empresas de tecnologia, no sentido da lógica do capitalismo de dados, com suporte no superávit comportamental, como bem demonstra a frase “move fast and break things”, verifica-se o surgimento por parte da doutrina e de certas regulamentações éticas e jurídicas de uma nova abordagem, representando uma virada epistemológica, traduzindo-se em uma possível mudança de paradigma. E isso no sentido de se pensar e agir de forma mais inclusiva, democrática e sustentável, pensando-se a longo prazo, no futuro da vida humana na terra, como da permanência da vida em geral, sendo uma mudança também, portanto, cultural, necessária para que se evite os resultados já previstos e catastróficos da mudança climática.

Mas o mais importante é saber fazer as perguntas corretas e que mais interessam, tais como, como queremos viver, o que nos é realmente importante realizar como sociedade? Do que se trata, então, para fazermos as perguntas corretas, é verificar se são advindas de uma preocupação maior com o pensamento crítico do que com respostas prontas ou, pior, com a pretensão de verdades absolutas.

Verifica-se que a dignidade humana, assim como os valores e princípios atrelados à fórmula jurídico-política de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, tais como justiça, equidade, solidariedade, sustentabilidade, além de uma adequada proteção a todos os direitos fundamentais potencialmente afetados, e não apenas a privacidade, são critérios essenciais para a estruturação da IA, tal como destaca, por exemplo, a Comissão Europeia (European Group on Ethics in Science and New Technologies, Statement on Artificial Intelligence, Robotics and “Autonomous” Systems, 2018, https://ec.europa.eu/research/ege/pdf/ege_ai_statement_2018.pdf, p. 16 ss.).

Tais critérios vão no sentido de se alcançar uma melhor proteção aos direitos humanos e fundamentais de todas as parcelas da população, de molde a se focar não apenas nos aspectos e direitos individuais, mas também naqueles coletivos e sociais (multidimensionalidade dos direitos fundamentais), sendo imprescindível uma análise crítica, logo filosófica, no sentido de uma “etopoética”, isto é “que tem a qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo” (Foucault), por construtivista de novos valores e de uma consciência crítica mais aguçada, verificando-se que não mais é suficiente em termos de sustentabilidade e equidade uma análise meramente econômica do direito, amparada em aspectos de eficiência e maximização da riqueza, acirrando cada vez mais concentração de riqueza absurda e suicidária.

Trata-se de uma perspectiva epistemológica “democrática”, pois se pauta na promoção de um amplo debate para incluir o maior número de posições, e assim a legitimidade do direito passa a depender, sobretudo dos procedimentos que institui (e, correlativamente, o instituem), tanto que seus resultados precisam coincidir com um dos possíveis conteúdos dos seus princípios e demais normas, para estar de acordo com valores básicos tais como racionalidade, participação democrática, pluralismo ou eficiência econômica, que são já perseguidos no momento mesmo em que são instituídos os procedimentos, com fundamento em autores como o filósofo do direito frankfurtiano R. Wiethölter, a quem Habermas segue, de acordo com quem nas sociedades pós-industriais encontramos como característica mais distintiva do direito, justamente, sua “procedimentalização” (Prozeduralisierung), além das contribuições pioneiras e originais em nosso país, por parte de Willis Santiago Guerra Filho, feitas a partir da entrada em vigor de nossa Constituição de 1988.

Embora haja críticas, no tocante à elaboração de princípios éticos e também à filosofia, algumas já de recuada data, a exemplo da crítica de Marx em suas famosas Teses sobre Feuerbach (“Thesen zu Feuerbach”), questionando o papel dos filósofos, para além da mera contemplação ou interpretação, no sentido de contribuírem para a modificação do mundo, por entender terem vindo da filosofia poucos esforços para transformá-lo, é certo que a filosofia contemporânea é tida pelos mais diversos filósofos e orientações filosóficas, não apenas aquelas marxistas, como uma prática. É o que defende clara e explicitamente Wittgenstein, sendo também em sua operabilidade que Heidegger faz a analítica existencial do Dasein, enquanto “ser-no-mundo”. Pensamos que antes de mudar o mundo é preciso compreender a este de forma devidamente aprofundada, como a nós, pensando de forma radicalmente crítica, até porque, tal como afirma Nietzsche, interpretar e mudar o mundo não são duas coisas distintas, o que Heidegger endossaria, se somos “ser-no-mundo”, como eventualmente também Wittgenstein, ao dizer que todo “jogo de linguagem” (Sprachspiel) depende de uma “forma de vida” (Lebensform), atividades também, mas que não são meramente linguageiras.

Então, do que se trata é de uma ação não como mera práxis, mas desenvolvida no âmbito de uma “téc(h)n[po(ét)]ica”, reprodutiva, mas voltada a verificar as potencialidades da técnica no sentido grego de práxis, ao lado da “poiesis”, assumindo a possibilidade da existência da tecnodiversidade e, pois, de outro destino, que não seja um de domínio e sujeição à economia no capitalismo, com base na forma moderna da técnica, a tecnologia, como um desafio da exploração, conforme o conhecido questionamento de Heidegger.

Da mesma forma, apesar das críticas aos princípios éticos, por serem abstratos, genéricos, e também por não endossarem uma coercibilidade das práticas, podendo dar ensejo ao que se tem denominado de “ethics shopping”, “ethics lobbying”, “ethics bluewashing”, “ethics dumping” e “ethics shrieking”, sendo formas de tentar se esquivar da legislação, e assim promover uma escolha de princípios éticos em um mercado regulatório que mais se adeque à sua realidade, focando apenas em práticas autorregulatórias, em vez de promover mudanças efetivas e substanciais na forma como se tem atuado, mostra-se como uma nova fundamentação epistemológica e, mesmo, metafísica, é urgente. Ela não deveria ser vista de forma alternativa às tradicionais, mas de forma complementar, como novo e melhor sustentáculo de regulamentações jurídicas. Em apoio, vale referir trabalhos como os de Ben Wagner, “Ethics as an Escape from Regulation: From ethics-washing to ethics-shopping?” In M. Hildebrandt (Ed.), Being Profiling. Cogitas ergo sum. (Amsterdam University Press) ou “Ethics as an Escape from Regulation: From ethics-washing to ethics-shopping?”; como também o de Luciano Floride e Josh Cowls, “Ethics, governance and policies in AI. A Unified Framework of Five Principles for AI in Society”.

Tais temáticas e questões complexas demandam uma abordagem à luz de uma proposta epistemológica de filosofia da IA, preparatória de uma possível ética da IA, também em termos de cidadania e educação digitais. A IA não é mais vista apenas como um artefato, mas como um agente, ao lado também de tal concepção por parte da natureza, a qual reage aos nossos padrões excessivamente consumistas, antropocêntricos e destrutivos, havendo um novo imaginário hipercomplexo e hiperconectado, onde tudo e todos estão conectados, antes mesmo da internet das coisas se tornar generalizada.

As crises se conjugam e se multiplicam, falando-se em crise ecológica, democrática, de sentido, epistemológica, também daquela já prolongada do direito. Eis que uma abordagem interdisciplinar e crítica se denota mais apta a enfrentar tais novos e urgentes desafios, de forma a trazer fundamentos para repensarmos a nossa arquitetura filosófica e epistêmica, como também nossa própria ontologia, antropocêntrica e individualista.
Do que se trata então é de pensarmos nas questões de quais os fundamentos epistemológicos e hermenêuticas para a temática da relação e interação humano-algoritmo. Por um lado, respeitando as diferenças, numa perspectiva multicultural (multiculturalismo emancipatório), bem como levando as especificidades brasileiras em consideração, de forma a se pensar na elaboração de uma Filosofia da IA autóctone e enraizada, tanto em nosso tempo como em nosso espaço, assim físico como cultural.

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