AS BACANTES DE EURÍPIDES
Tradução, introdução, comentários, notas e ensaio
ORDEP SERRA
Editora Odysseus, 2022.
Por Marcus Mota*
É um privilégio termos em língua portuguesa um escritor/pesquisador do gabarito de Ordep Serra. Fazer o que ele faz não é fácil, pois é preciso levar em conta diversas habilidades. E o que temos em mãos? Temos não apenas uma bela tradução do texto de Eurípides a partir do original grego como também uma erudição viva e atualizada, que se apresenta em todos os lugares da publicação. Foi um investimento pessoal de décadas de dedicação aos estudos clássicos e às letras que fizeram de Ordep Serra um intelectual ímpar no cenário brasileiro. E tudo isso e muito mais está no seu texto global, tanto na tradução com em todas as notas, comentários.
Desde seus estudos colegiais de latim até passar pela escola da vida e da cultura no extinto e lendário Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Brasília, dirigido por Eudoro de Sousa, e seguindo por uma carreira universitária brilhante e multidisciplinar, Ordep Serra tem oferecido ao público demonstrações de que é possível integrar erudição e sensibilidade em descomunais esforços e emprendimentos de recepção da tradição greco-latina, como já nos presenteou a todos com seu O Reinado de Édipo (Editora UnB, 2007) e o ciclópico Hinos órficos: Perfumes ( Odysseus Editora, 2015), entre outros tantos títulos.
Esta enciclopédia-Bacantes de Ordep é algo sem igual em língua portuguesa e no Brasil. Temos uma tradição nacional de traduções da obra de Euripides, como as de Eudoro de Sousa (Duas Cidades, 1974), Jaa Torrano (Hucitec, 1995), Trajano Vieira (Perspectiva, 2003), entre outras. No meio de tantas possíveis retomadas de textos greco-latinos a obra de Eurípides só rivaliza com os diálogos iniciais de Platão em abundância de oferta. Mas o que não tínhamos é a complementaridade entre estudo de fôlego e ato tradutório, como se as duas coisas pudessem ser separadas… Ordep nos traz isso agora.
Seja por opções do mercado editorial ou da formação de intelectuais no Brasil, as traduções dos chamados ‘clássicos’ esbarram nos limites de suas realizações. Traduz-se a língua, mas não o texto, e a cultura. Ainda mais textos teatrais, que demandam uma amplitude mesma do ato escritural, sua inserção em práticas estéticas e contextuais complexas. Com isso, há uma atomização dos produtos da Antiguidade, que são consumidos como individualidades autosuficientes, e assim documentos que abonam toda sorte de generalizações e clichês interpretativos. Ou indiossincrasias pernósticas…
Consciente do diálogo multitarefa que a erudição pode prover, Ordep disponibiliza para o leitor discussões diversas: o contexto da dramaturgia na antiguidade, temas atuais de recepção crítica de Eurípides, do teatro antigo e da cultura grega; e questões tradutórias a partir de amplo conjunto de referências textuais e intratextuais.
Eis a estrutura do livro:
inicialmente temos uma introdução que apresenta e discute dados sobre vida e obra de Eurípides e sua recepção, com ênfase, é claro, na fase final, na qual As Bacantes foi composta e encenada postumamente em 406 a.C. Seguindo pistas de As Rãs, de Aristófanes, sabemos que, com a morte de Eurípides, fecha-se o arco da grande dramaturgia clássica ateniense. De uma forma e outra, As Bacantes, a única peça remanescente do repertório teatral grego em que Dioniso irrompe em cena, indica um ponto de convergência e esclarecimento da tradição dramatúrgica.
Em seguida, após essa contextualização preparatória, temos dispostos lado a lado o texto original e a tradução de As Bacantes. Para o texto utilizado, Ordep partiu da edição de Gilbert Murray, disponível na database Perseus. Mas suplementa a partir de dados da história da transmissão textual e outros editores, especialmente ao suprir lacunas dos manuscritos medievais com versos de Christus Patiens, uma peça bizantina escrita entre séculos 11 e 12 que contém versos de Eurípides e Ésquilo, entre outros, e que encena a paixão de Cristo. A solução de Ordep, mais que um gesto filológico, explicita a ampla convergência entre motivos na história das religiões.
Em correlato e indissoluvelmente vinculado à tradução, temos o longo bloco de comentários e notas, no qual Ordep arregimenta os recursos detalhados da filologia clássica e história das religiões, além de discorrer sobre a continuidade mesma da obra, em sua estrutura divisiva em partes faladas e partes cantadas/dançadas. Ordep presta muita atenção a estes dados que vem de uma imaginação cênica, cujo horizonte é o espaço-tempo de uma concreta encenacação. Ainda, as rubricas internas, que são as falas dos agentes em cena que indicam o que está acontecendo em cena, e os padrões métricos são acessados. Com isso, forma-se uma compreensão global da cena – das questões linguísticas à montagem.
Após esse miolo da obra, há série de microensaios reunidos em torno do título “Dioniso Multiface. Reflexões”. Aqui Dioniso e o dionisismo como questão são estudados em diversos aspectos. Repassa-se a difusa presença da divindade nas referências textuais clássicas e em suas reintepretações modernas e contemporâneas. Em torno de Dioniso, formam-se, cristalizam-se disposições culturais várias, entre elas experiências universais de liberdade, resistência e festa.
Da filologia à antropologia filosófica – eis o emblema dessas reflexões que depois desembocam na parte final desta publicação, denominado “APÊNDICE IMAGINATIVO EM CAMPO DE CONJETURAS E LACUNAS” . De fato, a aventura poética de se adentrar na trama de transmissão e interpretação textual de As Bacantes revolve sobre o próprio intérprete. Mais que explicar o texto, faz-se necessário retornar ao mundo de modo diferente. Dioniso arrasta o homem completamente. Neste apêndice, Ordep, cativo do fulgor elucidativo de Dioniso, dialoga com o leitor, solicita dele que retome as trajetórias até aqui realizadas, e encena as aporias e as razões das opções tradutórias realizadas. Dioniso só endoidece os sãos.
Brasília 10 de maio de 2022
Marcus Mota
Professor Titular / Full Professor
Universidade de Brasília/ University of Brasilia/Brazil
Instituto de Artes/ Institute of the Arts
Laboratório de Dramaturgia e Imaginação Dramática (LADI)/ Drama LAB
Editor da Revista Dramaturgias/ Main Editor Journal Dramaturgies