Cyro de Mattos
O moço morava no outro lado do canal. Lá havia uma olaria. Trabalhava, de semana em semana, nas suas artes de oleiro, até certo ponto divinas. Ali, ele fazia moringa, panelas, bonecos e santos, transformava o que era simples em coisas que causavam admiração a quem conhecesse. Ninguém resistia em comprar uma das peças que suas mãos logravam extrair do barro com engenho e arte. Mãos caprichosas, ficaram famosas no seu jeito de amoldar o barro, extrair o belo da vida onde antes se escondia a matéria inerte.
Já a moça morava no lado de cá, na outra margem do canal, onde havia a pequena cidade com o seu comércio próspero e uma feira movimentada aos sábados, em um dos lados do cais. A moça fazia toalha, tapete, rede. As mãos delicadas, de tecelã admirada, sem igual nos arredores e longes daquela cidade pequena, que tinha praias belíssimas, muito apreciadas pelos moradores locais e os que vinham de fora desfrutar o veraneio.
Em cada domingo, ele empreendia o caminho das águas. Na canoa remava. Sentia-se bem com a manhã clara, a aflorar no coração manso sentimentos de ternura, a cada lance que remava.
Rema, rema, remador,
se queres ver o teu amor…
Manejava o remo com serenidade, a canoa singrava no espelho das águas. Prosseguia na manhã sem nuvens, ele concentrado em cada remada que dava, a canoa como uma folha deslizando nas águas sopradas por um vento calmo, chegando a dar sono.
Se a canoa não virar,
devagar chegarei lá,
feliz cantarolando
meu amor vou encontrar…
Confiante cantava. O casamento foi marcado para maio, mês de nascimento do moço artesão e da moça tecelã, uma feliz coincidência, diziam, sorriam, beijavam-se. Era para acontecer num desses domingos de sol radiante. Na igrejinha de paredes alvas, erguida na colina, o pátio ficaria enfeitado de bandeirolas. Lá dentro os vasos com cravos e rosas, os ares ativados com o perfume das flores. O sino velho na torre saudaria os noivos, as batidas fazendo blem, blem, blem, alegrando a cidadezinha de belezas antigas na manhã luminosa.
Vontade de chegar depressa, abreviar o caminho das águas. Bater à porta da casa onde a moça o esperava desde cedo, o coração temeroso, o rosto de ânsia. A canoa impelida pelo remo em lances cadenciados. O vento, a princípio manso, de repente assoviou forte, no peito do moço bateu enraivado. Também estava enamorado da moça? Vento virado em bicho ciumento, danado, como se quisesse derrubar nas águas o moço, impedindo-o de se encontrar com a moça. Bateu mais forte na canoa, que bateu na pedra, virou de lado, encheu de água. Desceu para o fundo do canal, sumiu nas águas escuras.
Nadou com firmes braçadas. Para se encher de ânimo, dizia para si, entre os redemoinhos da alma. “Nada, nada, nadador, se queres ver o teu amor.” Até que pisou em terra firme. Estava cansado, o peito arfava. Colheu flores silvestres no barranco, antes de prosseguir na jornada.
Já desanimada, a moça não mais esperava que ele aparecesse. De repente ouviu alguém bater palmas lá fora. “Tem alguém aí em casa?” Apressada foi abrir a porta. Queria saber de quem eram as palmas fortes. Assustada, viu o moço que aparecia risonho, trazia um ramo de flores para a amada, num rosto contente a expressão vitoriosa.
Entregou à moça o buquê de flores. Pediu uma xícara de café quente. Sentou na cadeira da sala, vestido com outras roupas, limpas e bem passadas, que a própria moça providenciara. Depois de aquecer o peito com o café, bebido aos poucos, começou a contar por que se atrasara. O vento cheio de ciúme bateu na canoa com uma rajada medonha, suficiente para fazer um rombo na popa. A canoa afundou. Para não esmorecer na travessia, fortaleceu a vontade com uma coragem impressionante. Impeliu-se em arrojadas braçadas. Nada o atemorizava. Nem a fundura do canal, a correnteza poderosa, o vento incontrolável, enciumado, que assoviava na manhã tormentosa.
Durante a difícil travessia, só queria que o perigo fosse superado, chegasse ele sem demora àquela hora final para dizer finalmente à moça o que sempre desejara:
– Estou esperando aqui na igrejinha para receber você como a minha esposa.
Como havia prometido, desde aquele dia em que o artesão afamado deu o seu primeiro beijo na tecelã amada.