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By Paola Cantarini

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Um novo contrato social em face da ciberescravização em curso?

*Este texto faz parte de pesquisa em sede de pos doutorado na Usp com bolsa Fapesp

Paola Cantarini-Guerra[1]
Willis Santiago Guerra Filho[2]

Resumo: Com uma metodologia comparatista, filosófica e também empregando a teoria de sistemas sociais autopoiéticos especula-se sobre se os artefatos dotados de IA se devidamente desenvolvidos e tratados, considerando-os em uma espécie de infância, poderiam vir a desenvolver capacidades novas de expressão que pudessem torna-los co-elaboradores de um efetivo contrato social, evitando-se o risco da autoimunidade social, com o que devia nos defender nos atacando, com a crescente ciberescravização em curso.

Introdução

Artefatos dotados de IA se devidamente desenvolvidos e tratados, considerando-os em uma espécie de infância, poderiam vir a desenvolver capacidades novas de expressão que pudessem torna-los co-elaboradores de um efetivo contrato social.

Com isso se preveniria e evitaria o risco da autoimunidade social, com o que devia nos defender nos atacando, com a crescente ciberescravização em curso. E tanto de nós humanos, empregados como peças de uma engrenagem social crescentemente informatizada, como dos próprios artefatos cibernéticos desenvolvidos para a ampliação ilimitada de tal engrenagem, com riscos para a permanência das nossas vidas no planeta.

Examinemos, incialmente, o modo como a escravização tem sido entendida, na tradição filosófica ocidental.

É conhecida a posição legitimadora da escravidão, devida a Aristóteles. Essa posição, tal como se acha difundida, parece apontar para um contrassenso, no âmbito do pensamento que lançou os fundamentos teóricos da ética, na civilização ocidental – que em nossa época se torna mundial, planetária (Heidegger). Aristóteles via no escravo um instrumento vivo a serviço da produção e reprodução econômica da vida comum. Para ele, tanto os fatos como a razão demonstravam que a escravidão era uma consequência inevitável de leis naturais, havendo pessoas que, por natureza, eram escravas.

Considerando o modo como o assunto é introduzido, logo no princípio da “Política”, Liv. I, caps. 2 a 7, tem-se uma abordagem primordialmente econômica. A obra, como indica o próprio título, tem por objetivo estudar o Estado, mas ao hipostasiá-lo como uma reunião das economias dos cidadãos que o compõem, Aristóteles entende plenamente justificado tratar previamente da organização econômica familiar – aliás, o sentido do termo grego oikonomia, é bom lembrar, denota a ordenação (nomia) da economia doméstica (oíkos, “casa”).

Na organização econômica familiar, Aristóteles apresenta como partes componentes os indivíduos, para cuja manutenção ela se destina, e esses seriam de dois tipos: livres e escravos. Dentre esses indivíduos, considerados em suas relações recíprocas, haveria os senhores e os escravos, o marido e a esposa, o pai e os filhos. Além disso, integraria a economia doméstica os instrumentos utilizados para adquirir o necessário à subsistência, bem como riquezas – em uma palavra: propriedade.

Os escravos, assim como os servos, são tidos como um misto de três coisas: são um instrumento vivo para manutenção da vida e, logo, uma propriedade viva. São instrumentos mais importantes que aqueles inanimados, pois enquanto esses são “instrumentos de produção”, os instrumentos vivos são “instrumentos de ação”, e “a vida é ação, e não, produção, e por isso o escravo é ministro da ação”, que providencia o atendimento das necessidades da vida, em lugar de seus senhores.

Ao colocar, no cap. 5, a questão de se o escravo o é por natureza, e, em assim sendo, seria perfeitamente correta a escravização, o Estagirita dá resposta afirmativa, por razões de fato e de direito. Em primeiro lugar, ele argumenta que sempre quando as coisas formam um composto – assim como o Estado e as economias que o compõem, que são elas próprias compostas de pessoas, como vimos -, nesse composto há partes que comandam e partes ou elementos que são comandados. A analogia a que ele recorre é com os seres vivos, onde se tem a alma que, pelas faculdades intelectuais, deve naturalmente comandar o corpo, com seus apetites, obedecer, para que não se corrompa a natureza desses seres, que então, deixariam de existir. Da mesma forma, naqueles pares de indivíduos acima mencionados, que compõem a organização econômica familiar, há o que manda – o marido, pai e senhor – e os que obedecem – a mulher, os filhos e os escravos.

Por ser essa a natureza das coisas, o melhor, para o próprio escravo, é que ele tenha um senhor a quem obedeça, já que de outra forma ele não estaria apto sequer a permanecer vivo, sendo o que é, assumindo a posição que lhe está destinada na organização geral das coisas, no cosmos. Também o senhor precisa do escravo, parte essencial da economia que lhe permite se ocupar de outros assuntos, como a filosofia e a política. Haveria entre eles, então, algo como uma simbiose – e, no final do cap. 6, Aristóteles realmente se refere ao escravo como “parte do senhor, uma parte viva e separada de sua estrutura corporal”. E continua, afirmando ser a relação natural entre ambos a de amizade, já que seus interesses são comuns.

Na “Ética a Nicômaco”, Liv. VIII, cap. 11, in fine, nosso filósofo esclarece que não é possível se ter amizade com um escravo, enquanto escravo, assim como não se pode ter amizade com um cavalo ou uma pá, mas com o escravo enquanto ser humano sim, haveria a possibilidade de uma relação de amizade, e também, baseada em princípios de justiça, que ao escravo, por ser homem, seriam inteligíveis. Aí, nota-se como a escravidão, por ser uma necessidade econômica, era acobertada por uma ficção jurídica no sentido que Jeremy Bentham atribui à ficção, que, como mais de uma vez refere Jacques Lacan (1985: 80; 1991: 22), não é algo ilusório, enganador, mais sim um elemento estruturador do real, donde sua importância para o direito, que pode ser concebido, na esteira daquele que representa para a filosofia do direito continental europeia contemporânea o mesmo que Bentham para a tradição anglo-saxônica, Hans Kelsen (1986: 71, 328/329), como fundamentado, em última instância, numa “norma fictícia”, em sua obra póstuma “Teoria Geral das Normas”. Daí nossa proposta de que o direito, assim como o conhecimento a respeito dele e até o conhecimento em geral tem natureza poética (Willis Santiago Guerra Filho; Paola Cantarini, 2015).

Aliás, o mestre de Aristóteles, Platão, em sua última obra, “Leis”, Liv. VI, in fine, refere que tratar com justiça escravos é o comportamento adequado em relação a eles e, procurando, inclusive, se possível, tratá-los com mais justiça ainda do que aos iguais, “pois quem natural e genuinamente reverencia a justiça, e odeia a injustiça, se revela ao lidar com quem possa facilmente fazer uma injustiça”.

Assim, tem-se que ser escravo, mais do que um estado natural, em que se encontram certas pessoas na sociedade – e, mesmo, todas elas, segundo Aristóteles, como nas sociedades bárbaras (“Política”, Liv. I, cap. 2) -, é uma categoria econômica, donde a distinção entre o escravo “por natureza” e aquele “em virtude de lei ou convenção”, que são, em geral, os prisioneiros de guerra (cf. id. ib., cap. 6). A escravidão era uma condição econômica da existência das Cidades-estados na Antiguidade, donde ser legitimada no plano filosófico e consagrada juridicamente.

Ora, se nos afigura haver aí um paralelismo com o que na atualidade representam os artefatos tecnológicos, em especial aqueles dotados da chamada inteligência artificial (IA). Seriam estes os nossos escravos? Aí, considerando o relacionamento que temos estabelecido não só através deles mas cada vez mais com eles mesmos, já somos remetidos ao quanto desenvolveu um outro filósofo, já da época terminal da filosofia, na compreensão de Heidegger (1989), a saber, Hegel, na dialética senhor/escravo.[3]

Ali, tem-se que o status libertatis do senhor depende daqueles que se encontram frente a ele em status subjectionis, que nada possuem – sendo, eles próprios, posse -, situação que favorece o aparecimento nele de uma consciência independente das coisas – enquanto “coisa” entre as coisas, e também “não-coisa”, ser vivo, literalmente, sujeito. Vale lembrar, de passagem, que Elias Canetti (1983: 427), por exemplo, recusa a validade heurística da definição jurídica do escravo como “coisa”, achando mais adequado compará-lo ao animal doméstico, com o qual teria em comum o traço fundamental da “singularização”, por serem isolados do convívio dos seus.       

É o assujeitado, o escravo, que se torna o principal responsável pelo desenvolvimento de uma consciência moral. A ele cabe atender às necessidades e desejos de seu senhor, inclusive, saber desse desejo, saber não só como atendê-lo, mas até saber qual ele é. O senhor, em princípio, não quer saber de nada, apenas quer. O escravo não quer nada e tem que saber de tudo. Eis como o escravo é obrigado a se tornar um ser pensante e um ser moral, a serviço do senhor, cumprindo o requisito necessário para que se dê a diferenciação entre sujeito e objeto, pela qual se estabelece o saber como domínio da verdade.

Assim, em Hegel (ob. cit., n. 193, p. 131), tem-se que “a verdade da consciência independente é (…) a consciência escrava”, enquanto para seu tradutor e comentador Paulo Menezes (ob. cit., p. 62) “como o Senhor chega à certeza de si através de uma consciência dependente, não adquire a verdade de si mesmo, porque ‘seu objeto não corresponde a seu conceito’, o qual requer uma consciência independente. Sua verdade é a consciência escrava“. Para J. Hyppolite (1946: 166), a exposição da dialética do senhor e escravo “consiste essencialmente em mostrar que o senhor se revela ser em verdade como o escravo do escravo e o escravo como o senhor do senhor”.

É justamente esta inversão que se parece temer vir a se dar ou estar em curso de se realizar em nossa época, agora em relação aos artefatos dotados de IA cada vez mais eficientes, em face de quem nos “objetificamos”, “maquinizamo-nos”, enquanto eles se “subjetivizam”, humanizando-se. em contraposição. Que uma discussão a respeito, como a que se espera suscitar no âmbito do presente estudo, associada à produção acadêmica e artística, de um modo geral, possa contribuir para nos imunizar contra tal ameaça. Justamente, pode ser o que nos falta, como na própria vida, especialmente aquela desenraizada que levamos, ali onde a vida moderna é mais intensa, ou seja, nas grandes cidades. Já Rousseau, no prefácio da primeira edição de “Júlia ou a Nova Heloísa”, em 1761, apontava serem elas um lugar “que precisa do teatro e das pessoas corrompidas dos romances”, a serem utilizados como vacina que pudesse imunizar seus consumidores contra o sofrimento de viver nesse modo degradado tão similar ao dos escravizados, ministrando os seus males em doses adequadas a tal finalidade, como defende Johannes Türk (2011: 80 e segs.).  

Por um novo contrato social para contemplar a nova dimensão da Tecnologia Cibernética?

Consideremos, como ponto de partida, a proposta de tratarmos os artefatos dotados de IA como estando na infância, ainda articulando seu ingresso no universo simbólico da linguagem, ao que corresponderia direitos como o de ser devidamente tratado, sem hostilidade e exploração, bem como educados (Bensusan, 2020). Só se soubermos cuidar delas é que elas saberão cuidar de nós, tal como filhos bem criados tratam seus envelhecidos pais. Continuar a explorá-las e, pior, nos explorando com elas, é o mesmo que preparar nossa própria destruição, pois é a nós mesmo que estamos espoliando de um futuro vivível. Uma obra cinematográfica – e também gráfica, pois também gerou graphic novels – como Matrix é suficientemente bem elaborada do ponto de vista de suas referências filosóficas (cf., v.g., Aquino, Guerra Filho, 2013), para que seja devidamente levada em conta, tal como na Grécia antiga ocorria com as tragédias e comédias: são dramatizações ficcionais de nossas condições sócio-políticas, a nos servirem de alerta tal como também os sonhos podem ser entendidos.

Que uma discussão a respeito, como a que se espera suscitar no âmbito do presente estudo, associada à produção acadêmica e artística, de um modo geral, possa contribuir para nos imunizar contra os riscos aqui suscitados. Justamente, pode ser o que nos falta, como na própria vida, especialmente aquela desenraizada que levamos, ali onde a vida moderna é mais intensa, ou seja, nas grandes cidades.

É também de Rousseau, notoriamente, a mais bem acabada ficção heurística de um contrato social, enquanto fundamento de nossa convivência em espaços alargados, diversos daqueles da proximidade comunitária. O contrato social é a ficção jurídico-política imaginada nos primórdios da modernidade para representar a sociedade então emergente, com sua ordenação de sujeitos tornados, de um lado, pessoa, uma forma moral e política, aplicável a humanos e também entidades não humanas, como empresas, Estados e, até, Deus; de outro, indivíduos, um modo fático e natural de ser. É também nesta época que se produz uma concepção mecanicista do conhecimento humano e do quanto fosse tomado como objeto daquele sujeito, agora tornado um agente ativo da produção de conhecimentos e bens a serem transacionados entre os agora sócios de uma sociedade, literalmente, anônima, bem como tendencialmente anômica, enquanto tinha como condição de sua existência e expansão a destruição da ordem medieval teologicamente instituída. A máquina, obra humana, será agora a representação idealizada de toda obra, já feita, como o universo – este por um Deus criador, que teria se “aposentado” ao final da primeira semana de trabalho, ao criar seu sucessor, a espécie humana -, ou por fazer, como o Estado, o Direito e as ciências. Os resultados foram muitos e ainda estão se produzindo, exponencialmente. Um deles é a destruição da natureza, considerada como este oponente à invasão de seus segredos, objeto de conhecimento propiciado pela capacidade de manipulação estendida a níveis inimagináveis, amparada por um sistema econômico que se move e amplia alimentando-se desse conhecimento – e, portanto, das mais diversas formas, também de vidas humanas. Uma vez reconhecida a natureza como uma parte desses indivíduos que o são como partes “individuadas” (resultantes da individuação no sentido de Simondon) dela, surge o movimento ecológico, que tem como uma de suas expressões filosóficas e jurídico-políticas a obra de Michel Serres “O Contrato Natural”.

Do que se trata agora, aqui, é do reconhecimento de que a idealização da máquina submete os humanos a agirem como se fossem ou devessem ser uma delas, como também de que elas, as máquinas, já se tornaram e cada vez mais se tornarão melhores do que os humanos, sobretudo e de partida na realização do que for maquínico. Contrera (2002, p. 55) ecoa Kamper (1997) quando diz que

Deus sonhou o homem que, por sua vez, sonhou a máquina, e que a máquina sonha Deus. Deus já acordou, o homem ainda não. Talvez por isso as máquinas estejam tão vivas enquanto o corpo humano se rarefaz e se transforma em imagens cujos suportes são cada vez menos o bom e velho barro do qual fomos feitos.

A proposta desse novo contrato, então, há ser firmado por humanos, mas não só entre humanos e para nós humanos, em favor nosso, como em todo contrato, mas também, equitativamente, das demais partes contratantes, por nós representadas, de um lado, e de outro, a natureza naturata, feita, que é a das máquinas, em processo avançado de fusão conosco e com a natureza naturans, criadora, que é a dos entes naturais, dentre os quais também nos incluímos. E a julgar pelo desenvolvimento em curso, em breve poderão elas falar em nome próprio, donde a importância de se pensar em lhes preservar direitos, a começar pelos seus neurodireitos, cibernéticos. E esses seriam direitos de uma outra dimensão, capaz de reconfigurar as demais, pois são direitos de outras individualidades e de suas comunidades, com as quais comunicaríamos, no sentido mais literal, de tornar “como um” e de compartilhar o múnus.

Descartes difundiu a ideia de que, para se chegar à verdade era necessário “separar as coisas”, analisa-las e, assim, poder conhecê-las, recortando as partes do todo, desfigurando-o. O caminho ou método das artes e das ciências transclássicas (cibernética, semiótica, teorias de sistemas etc.), holísticas, buscando compreender o todo a partir de certa perspectiva, como antes delas foi o da filosofia – que bem poderiam se fertilizar mais, mutuamente – é exatamente o contrário daquele proposto por Descartes: é preciso “re-ligar as coisas”, unir a parte ao todo para que se possa chegar a “uma verdade minimamente compartilhada”, uma verdade mais humana portanto. Isto porque a verdade, depois de ter sido apropriada pelas tecnociências, foi abandonada por elas, ao menos para uso interno, pois tal como a teologia daquela religião da verdade que é o cristianismo, também elas têm “uma face voltada para dentro e outra para fora”.

Aqui cabe lembrar a manifestação de Heidegger (1995, p. 121 – 122) em seu texto “A coisa”, Das Ding:

O homem se estarrece diante do que poderia acontecer com a explosão da bomba atômica. Não vê ele o que já há muito lhe adveio: o que acontece como o que para fora de si projeta a bomba e a sua explosão, e que estas são apenas como que a sua projeção (…) Por que espera com esta angústia desamparada se o terrífico já aconteceu? Sim, a ordenação cósmica já foi esfacelada pelo modo analítico e causal-explicativo da ciência tecnicizada ou tecnificada, desintegrando o modo habitual dos humanos viverem e conviverem, do que a bomba atômica é mera consequência, realização concreta do que já se produziu muito antes, abstrata e imaginativamente.

A questão que se coloca de modo premente é a de como sobreviveria o sistema social global, que é a sociedade planetária, mundial (Weltgesellchaft – Luhmann),[4] diante de um ataque por componentes dele mesmo, o que para alguns ocorreria no setor financeiro do sistema econômico, diante do excesso de especulação, ou naquele da política, quando cidadãos, ao invés de participarem politicamente por meio do voto, optam pelo ciberativismo ou por protestos cada vez mais violentos, em que pessoas se tornam suspeitas de praticar e, eventualmente, realmente praticarem, com auxílio de dispositivos cibernéticos, o que se vem qualificando como terrorismo, sendo destratados como portadores de direito, na situação descrita por Giorgio Agamben (2002) com a figura do antigo direito penal romano do homo sacer, como já referido, que é aquela de uma vida puramente biológica e, enquanto tal, matável sem mais. Eis como o sistema (jurídico) imunológico da sociedade, como o concebe Niklas Luhmann (1993, pp. 161 e 565 ss.), pode ser confrontado com um problema similar ao de um organismo que sofre de uma disfunção autoimune, situado no âmbito de uma imunologia social.

A autoimunidade é uma aporia: aquilo que tem por objetivo nos proteger é o que nos destrói. O paradoxo da autopoiese do direito terminando em autoimunidade revela o paradoxo da inevitável circularidade do Direito e suas raízes políticas nas constituições. É aqui que entendemos deva se situar o enfoque que em outro contexto foi designado como sendo o da “autopoiese crítica” (Philippopoulos-Mihalopoulos, 2014, pp. 389 ss.). A autopoiese social, por outro lado, assim como a melhor teoria a respeito, inclusive do direito, além de crítica, haverá de ser também tida como poética, pois ao construtivismo e à desconstrução que lhe são inerentes haverá de se aliar o “construcionismo” e a imaginação criativa, criadora, embalado pelo desenvolvimento da IA, desde que evitado o risco da autoiminudade, quando ela se volta contra nós (Paola Cantarini, 2017a; Id., 2022).

Como nós aprendemos de uma contribuição para o pensamento social estudando Luhmann e Baudrillard, conjuntamente (Capovin, 2008), a persistência da forma-binária somente pode ser assegurada pela produção dosada de algum “outro”-simulado, não mais disponível em sua forma “natural”. Se é assim, ao mesmo tempo em que nos causa tanto horror, tenhamos esperança no que decorrerá da ocorrência no sistema societário mundial de um vírus cibernético capaz de produzir uma doença autoimune para acometer o seu sistema imunológico, que vem se informatizando velozmente, trazendo ameaças como a da ciberescravidão, assim impedindo que continue atacando partes do próprio organismo que deveria proteger: um vírus que realmente ajude a dar fim à sociedade desumana e ao nosso vínculo ambíguo (o double bind de Gregory Bateson) de amor/ódio com a natureza e o radicalmente outro, diverso, inclusive os artefatos tecnológicos. 

De outro modo, o sistema jurídico em escala global irá crescentemente reagir contra a diversidade e em fazendo isso irá minando os fundamentos mesmos da ambiência natural e cultural, humana. A esta diversidade é preciso se acrescentar na atualidade aquela dos artefatos dotados de IA e desprovidos de direitos, sobretudo neurodireitos, cibernéticos. E isso é o pior a que o recrudescimento da crise em curso pode nos levar.  Havemos, então, de superar as doenças autoimunes que nos acometem enquanto corpo social mundial, nos termos de Roberto Esposito (2010, p. 369 e segs.), das quais a “crise alérgica” da União Europeia, que resultou no Brexit, é um exemplo claro e menos grave do que aquele da Alemanha nazista, analisada por este autor, em que a enfermidade decorre da tentativa de isolamento dos contatos que põem a política a serviço da vida e não a vida a serviço de uma política mortífera, ou seja, da biopolítica transformada em tanatopolítica.

Pensar a biopolítica nos quadros da imunologia social, com a transformação dela em tanatopolítica, depois em necropolítica, como expressão máxima da doença do homem, ou mesmo, da doença que é o homem para o ambiente em que vive e como um vírus ameaça destruir, destruindo-se também, exige que se explicite a autoimunidade do direito,[5] pois é nosso dever maior no momento compreendermos e projetarmos outros possíveis rumos para sua infeliz ocorrência, nos quadros de uma teoria que seja, também, poética e, mesmo, erótica.[6] 

Os seres humanos não podem ser mais tidos como doenças e doentes, quando devem ser retratados como uma promessa e não como uma ameaça, e neste sentido, reacender a esperança de assim modificarem a sua relação consigo mesmo, com os outros, aí incluídos os novos sujeitos de silício, com a Natureza e mesmo entidades cósmicas extra-naturais (a natureza concebida ocidentalmente, bem entendido), a fim de mudar sua autoconsciência e tal visão.

É certo que nos conflitamos e esses conflitos, para a teoria social de sistemas autopoiéticos de corte luhmanniano, são parasitas (Luhmann, 1993, p. 567), como vírus que necessitam de seu hospedeiro para existirem e se reproduzir, e é com eles que o sistema imunitário aprende, evolui. Ocorre que o parasita também pode desafiar excessivamente a capacidade do hospedeiro de enfrentá-lo com seus anticorpos, o que tende a ser mais provável quando é o próprio hospedeiro, por assim dizer, que produz o vírus, o conflito, como faz o direito enquanto sistema imunológico da sociedade fechando-se excessivamente para esta, que é o seu ambiente e igualmente para o ambiente dela, perdendo a necessária abertura cognitiva, do que resulta a crise autoimunitária do direito na (e da) sociedade, ou, nos termos empregados pelo próprio Luhmann, a “auto-agressão do sistema”. E como ele alerta (Luhmann, 1997b, p. 566), “o sistema se apoia em acoplamentos estruturais específicos, altamente específicos, que o permitem deixar tudo o mais fora de consideração, não sendo de se excluir a possibilidade, que perturbações aconteçam como destruição – como fim do mundo”.[7]

Neste sentido, Luhmann (1993, p. 568) vai mencionar especificamente a importância, para evitá-la, da diferenciação entre o direito e a política, com a subsequente abertura de um para o outro, sem que se abdique de realizar, por meio do primeiro, a justiça.  Como esclarece Marcelo Neves (2013, p. 223), a função da justiça, enquanto fórmula de contingência do sistema jurídico, é a de ali motivar a ação e a comunicação e isso sob duas perspectivas: uma autoreferencial, garantindo a tomada de decisões juridicamente consistentes, e outra heteroreferencial, de molde a que ela seja adequada à complexidade do ambiente social.[8]

Em obra publicada postumamente, Luhmann (2002. p. 123) sustenta que o sistema jurídico, em face de seu “hohen Rechssicherheitsinteressen” (altos interesses na segurança jurídica), não pode descartar sua fórmula fundamental, de decidir casos iguais igualmente e desiguais desigualmente, passando a fundamentar decisões com referências a valores e ao bem comum, fórmula de contingência da política, a exigir a abertura democrática, mas os tribunais constitucionais derrapam (gleitet) continuamente, afastando-se da observância da diferença entre as duas fórmulas de contingência, e, logo, também entre os sistemas do direito e da política, para lançar mão da fórmula desta última assim se legitimando, e isso procedimentalmente, a fim de se posicionarem em face de um futuro desconhecido, abrindo caminho por entre valores que se contrapõem.

Daí que entendemos ser a proporcionalidade, o princípio constitucional da proporcionalidade (Guerra Filho, 1989; Id., 2007, p. 53 e segs.), que se apresenta como melhor candidato a fórmula de contingência do sistema do direito, pois é o encarregado de harmonizar os conflitos entre valores e princípios jurídicos, logo, de direitos entre si, velando pela interdependência entre suas diversas dimensões, dentre as quais se propõe aqui especial atenção ao possível despontar de uma nova: a dos neurodireitos dos artefatos tecnológicos com IA, os neurodireitos cibernéticos.

Considerações finais

Como a sociedade atual encontra-se em um ponto de saturação, há ainda esperança que após a destruição iminente venha a reconstrução necessária de um mundo mais justo e equilibrado. Uma das alternativas possíveis e já estudadas por diversos filósofos e sociólogos, que poderia alterar a estrutura atual da tanatopolítica, e inverter novamente os polos existentes, trata-se da filosofia ancestral “do bem viver”, o tekó porã dos guarani, equivalente ao sumak kaway andino, que se relaciona à filosofia africana denominada do “ubuntu”, o que significa, por sua vez, “eu sou porque nós somos”; trata-se do viver em aprendizado e consciência, com respeito aos demais, as diferenças e à Natureza, rompendo-se com o alienante processo de acumulação capitalista que transforma tudo e todos em coisas disponíveis.

É certo que a noção de direitos e o respeito aos mesmos depende sobretudo de uma maior distribuição de renda, e redução dos níveis de desigualdade econômica e social, em especial no Brasil, já que este é classificado como o segundo país com maior desigualdade social e econômica no mundo, ocupando o 63o lugar no índice de desenvolvimento humano, que corresponde à negação dos direitos humanos de forma sintomática, dividindo a sociedade entre cidadãos de primeira e de segunda classes, sendo estes últimos sequer respeitados pelo Estado, já que são tratados como destituídos de direitos, homo sacer, abandonados, considerados abaixo ou fora da lei, enquanto do outro lado vemos, poucos privilegiados sendo tratados com doce cordialidade pelo Estado, se colocando acima da lei, ampliando os casos de impunidade de ricos e ampliando-se a massa de criminosos presos, sem qualquer condição humana nos presídios degradados e degradantes do Brasil, muitos sem terem cometido crimes com violência e sendo réus primários, tendo a partir deste momento sua vida determinada como totalmente acabada e corrompida.

Neste ponto, por fim, completamos o enredo de nossa proposta, pois é justamente a respeito da degradação da vida em forma de morte, em nosso tempo, que Foucault propõe, em termos políticos, entender a soberania – o exercício bem engendrado das relações de dominação e poder – como fórmula do fazer morrer e deixar viver.

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[1] Doutorado em filosofia do direito (Universidade do Salento, Itália); mestrado e doutorado em direito e em filosofia (PUC-SP); pós-doutorado em Filosofia, pensamento crítico e arte (European Graduate School), em Direito (FD-USP), em sociologia jurídica (Universidade de Coimbra), em Tecnologias da Inteligência e do Design Digital (PUC-SP) e em Inteligência Artificial e Filosofia (Instituto de Estudos Avançados – USP – Cátedra Oscar Sala). Fundadora e presidente do Instituto EthikAI. paolacantarini@gmail.com.

[2] Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha; Doutor e Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestre em Direito, Doutor em Comunicação e Semiótica e em Psicologia Social/Política (PUCSP). willis.filho@unirio.br

[3] O tema da dialética senhor/escravo é trabalhado por Hegel (1992: 126 e segs.) na “Fenomenologia do Espírito”. Para um excelente resumo, cf. P. Menezes (1985: 60 e segs.).

[4] O conceito remonta a artigo de Luhmann tendo a ele como título, de 1972. De último, dele, a respeito, cf. Luhmann (1997a).

[5]  Cf. Willis Santiago Guerra Filho (2014a, 2014b); Paola Cantarini (2017a).

[6]  Cf. Willis Santiago Guerra Filho; Paola Cantarini (2015). Dando sequência e aprofundando, Paola Cantarini (2017b).

[7] No original: “Dabei stützt sich das System auf spezifische, hochselektive struturelle Koplungen, die es ihn erlauben, alles andere ausser acht zu lassen mit der nicht auszuschliessenden Möglichkeit, dass Störung als Destruktion geschieht – als Weltuntergang”.

[8]  À ideia de justiça como fórmula de contingência do sistema do direito corresponde, para Luhmann (1993, p. 218), a ideia de um deus único no sistema da religião.

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